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A importância de mulheres cristãs construírem um pensamento crítico sobre o feminismo

Rayane France
19 min readMay 31, 2022

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A internet é um excelente canal propagador de ideias, boas ou ruins, o impacto que uma informação jogada na rede pode ter na vida de várias pessoas é enorme. Com tanta informação sendo despejada sobre nós diariamente, precisamos aprender a filtrar e a discernir para não cair em armadilhas.

Se você é uma pessoa bastante conectada, também vai perceber que existem ondas de conteúdo nas redes sociais, são como moda dos anos 90, sempre voltam. E um dos assuntos que recorrentemente voltam à tona, é a pergunta clássica:“pode ser cristã e feminista?”, que está sempre aparecendo como tema de post no instagram, lives com convidadas, vídeos sobre feminilidade bíblica, etc etc etc.

O problema não está na pauta, está na maneira como escolhem tratá-la. O que se percebe na verdade é a entrega de uma ideia pronta, construída e passada adiante como regra de fé, se você não concordar com o pensamento que está sendo entregue, então você não pertence ao grupo. Percebe o erro?

Vou dar o exemplo utilizando a forma como muitas comunidadas tratam assuntos como sexo entre jovens e adolescentes. A Igreja ao invés de se aprofundar no que a Bíblia realmente diz e não diz, analisar pesquisas, mostrar a realidade por trás da indústria pornográfica, debater sobre prós e contras, direcionar a buscar em oração um convencimento pessoal do Espírito Santo sobre o assunto… a maioria ainda escolhe colocar um tabu em cima do “é pecado, não faça!” desconsiderando o quanto a curiosidade e a ignorância podem levar jovens à experimentar da pior forma e terminam em abismos. Em resumo, não é sobre se entender ou não como uma mulher feminista, mas você chegou a essa conclusão ou chegaram por você?

É muito mais fácil, tanto para quem passa quanto para quem recebe essa ideia, resumi-la em uma conduta específica e determinada, ao invés de esmiuçar um tema e gerar compreensão e sabedoria para decidir por si.

Um clássico evangélico: dizer “crente não pode beber” e transformar em conduta moral é muito mais fácil do que ter um estudo bíblico sobre o assunto, fazer os recortes necessários (um alcoolista vai lidar de maneira muito diferente com o álcool, por exemplo), ensinar jovens a buscarem sabedoria e maturidade para tomar suas decisões… enfim, é um processo que leva tempo mas é necessário, para que aqueles que se abstiveram do álcool a vida inteira, na primeira oportunidade bebam descontroladamente, e acabarem mal. Diferente do que muitos acreditam, não é a ignorância que protege, mas o conhecimento.

O COMEÇO: A REALIDADE DA MULHER BRASILEIRA

Mulheres são maioria no país, mais de 51%. Dessas, 45% chefiam suas famílias, mesmo recebendo 27% a menos que os homens no mesmo cargo. Uma mulher morre a cada 7 horas por feminicídio (crime de gênero), um estupro a cada 11 minutos. Mulheres também foram mais demitidas na pandemia.

Cada mulher com seu perfil, sua cultura, sua história. Nas igrejas existem mulheres de todas as cores, idades, cor, classe social, nível escolar… muitas compartilham da mesma comunidade de fé. Como falar com todas de uma única vez? Isso só o Evangelho com a ajuda do Espírito Santo pode fazer.

Enquanto na sociedade os recortes de classe e (principalmente) de cor são bem delimitados, sabemos qual é o perfil e quem são as chefes, CEOs, universitárias, médicas, donas de casa, empregadas, cozinhas, etc, cada uma se interessa e recebe direta ou indiretamente um tipo de conteúdo que condiz com seu perfil. Um exemplo bem básico e superficial, a Farfetch é uma plataforma online de venda de moda de luxo, dificilmente você vai encontrar peças que custam menos que R$500, então seu público é claramente de pessoas com padrões de consumo alto, não faz sentido pra marca investir em divulgar seus produtos em bairros de periferia ou direcionar seus anúncios online para pessoas que nunca compraram ou nunca se interessaram por moda de luxo. Não faz sentido lógico mostrar um vestido de R$5.000,00 para uma mulher que recebe um salário mínimo por mês e é chefe da sua casa.

E que fique claro, não há julgamento à quem compra o vestido de R$5.000, se isso cabe no seu orçamento e é um dinheiro limpo, ela faz o que quiser, é só pra exemplificar como mulheres são diferentes nas coisas mais comuns e cotidianas, até as mais complexas.

Porém, a Igreja de Cristo muitas vezes é o único lugar onda todas as mulheres tem lugar à mesa, juntas, recebendo o mesmo alimento e (em tese) sem nenhuma discriminação. Trazendo para a realidade, claro que há recortes na instituição, seja pela localização do templo, preço de eventos, acampamentos e por aí vai, mas mesmo nesses contextos, posso falar por mim que por muito tempo estive envolvida com congressos para mulheres, mesmo em eventos bilhetados é possível (e provável) que haja uma mulher com uma bolsa de R$5.000 sentada ao lado de uma que recebe R$2500 reais por mês, e ainda assim darão as mãos, orarão juntas, se abraçarão… não é raro.

Logo, deveria ser responsabilidade da Igreja, enquanto instituição, levar em consideração essas diferenças e contextos na hora de repassar informações, para que seja acessível e aproveitado por todas ao se tornar um conhecimento.

O ensino deve ser uma ferramenta, e não um fim em sim, numa representação bem superficial, é dar o alimento ao invés da comida mastigada.

Anos atrás rolando o feed do Instagram, cai num post compartilhado por uma pastora que tem na época já tinha um número considerável de seguidores e é bem relevante especialmente no meio jovem, o post era sobre como ela NÃO precisava do feminismo e como o movimento era um vilão para a família.

E realmente, ela “não” precisa do feminismo. Nascida em família rica, estudou nas melhores escolas, pôde viajar o mundo e conhecer diversas culturas, nunca sofreu racismo (por ser uma mulher branca considerada socialmente padrão), casou com um homem de uma família também rica, e pode desfrutar do privilégio de ter ajuda e suporte para cuidar das crianças, não precisar ter um emprego e ainda poder dedicar tempo ao serviço na igreja.

O que tem de errado nisso? Nada. Eu adoraria não precisar trabalhar tanto e poder investir tempo no ministério e ainda ter todo um suporte financeiro e familiar. Mas essa é a realidade de quantas mulheres? Pouquíssimas.

O errado é não ter consciência dessas diferenças e se correr o risco de colocar um jugo sobre outras mulheres. Em congressos para o público feminino, já perdi as contas de quantas vezes ouvi sobre como mulheres deveriam priorizar à família ao trabalho, sobre como o lar e os filhos precisam da figura feminina… sem considerar dados que apontam que a maioria das famílias no país não são formadas por pai + mãe + filhos, e que quase 50% das famílias são chefiadas por mulheres.

É incrível poder escolher se dedicar integralmente aos filhos quando isso é uma opção, mas quando não é, esse discurso pode trazer muita culpa às mulheres que precisam trabalhar para oferecer dignidade mínima aos filhos e família.

Exercer o evangelho inclui ter empatia e misericórdia com nossas irmãs, e não usar da Bíblia para trazer tristeza por uma realidade que foge do controle delas.

Um outro recorte essencial, é considerar a realidade da mulher negra no Brasil: elas sofrem mais abuso, ganham menos ainda que mulheres brancas, sofrem mais com desemprego, são as principais vítimas de homicídio, fora o racismo que afeta a vida por completo. Então, uma mulher que não vive essa realidade, falar num púlpito que “não precisa do feminismo” enquanto uma mulher que apanha do seu marido a assiste, definitivamente, não glorifica a Deus.

CULTO AO ANTIFEMINISMO

Se existe um ponto em que feministas e não-feministas que são estudiosos, engajados em causas sociais, defensores da mulher e da família concordam, é que o machismo é a raiz do problema, não o feminismo.

Entende-se que o feminismo nasceu como uma resposta ao estrago que o machismo fazia contra mulheres e contra a família, e o antifeminismo coloca como vilão quem nasceu sendo vítima.

O discurso antifeminista cresce na igreja sem problematizar e repensar o impacto que causa. Infelizmente, essa mesma liderança cristã (homens e mulheres) é nada ou quase nada engajada em pautas contra violência doméstica, feminicídio, abuso marital, estupro, maternidade compulsória, abandono paternal e todas essas coisas que nós mulheres vivemos encarando.

Independente de uma mulher se considerar feminista ou não, uma coisa é certa: o antifeminismo deve ser combatido, especialmente na igreja. Vamos analisar, que bem uma pregação antifeminista pode fazer à uma mulher que sofre agressões do seu marido diariamente? Ou às mulheres que sustentam suas casas financeiramente após terem sido abandonadas? Qual o mérito em ser antifeminista num país que homens usam dos conceitos de submissão bíblica para abusar de suas esposas, e pastores usam de seu poder para abusar (inclusive sexualmente) de suas ovelhas?

Toda energia que é usada para descredibilizar o feminismo deveria estar sendo usada no combate do machismo, que mata diariamente. O esforço em combater “a mentira feminista” deveria estar sendo investida na elevação da Verdade, muito se fala como mulheres não podem ser, e pouco se ouve sobre como homens devem ser.

Quantas vezes vemos a igreja repudiar os dados absurdos de estupro no país? Aqui, uma mulher é assassinada a cada duas horas, doze por dia, um estupro a cada 11 minutos, mais de 500 vítimas de agressão por hora. Em 2017, dos 4.473 homicídios dolosos, 946 foram feminicídios, crimes de ódio motivados pelo gênero. Considerando os últimos dados da Organização Mundial da Saúde, o Brasil ocuparia a 7ª posição entre as nações mais violentas para as mulheres de um total de 83 países.

O antifeminismo pode e é usado para perpetuar uma cultura machista onde mulheres vivem com medo e agressores saem impunes e outros nem denunciados são, faz com que mulheres não tenham forças ou desconhecem seu direito na hora de denunciar assédio em estruturas de poder como o trabalho, a própria casa, escolas, e inclusive a igreja! Considerei trazer dados e histórias de mulheres que foram abusadas por líderes religiosos, mas é muito triste, uma pesquisada no google e caímos num abismo de centenas de relatos horríveis, decidi não expor para que você tenha a escolha de procurar ou não, mas saiba, eles existem e não são poucos.

O caminho sempre será a elevação da verdade revelada em Cristo. Quanto mais parecidos homens e mulheres forem com o Senhor, menos serão moldados e enganados por qualquer ideologia, seja ela feminista, política, religiosa, ou social.

O FEMINISMO SEMPRE FOI CONTRA OS VALORES DO EVANGELHO?

Meu interesse em conhecer e estudar um pouco da história do feminismo não veio do nada, a internet foi o grande pontapé, mais especificamente, pessoas cristãs que em afirmavam veemente que o movimento nasceu já em desacordo com a vontade de Deus. O pouco que eu sabia me fazia ver o feminismo como algo absurdamente amplo, várias linhas de pensamento, vários ativismos, vários posicionamentos… como alguém pode afirmar que ele sempre foi oposto à vontade de Deus sem mostrar onde começou? Eu não sabia onde tinha começado e não me interessava na verdade, como falaremos depois, acredito que o feminismo precisa ser guiado pelas necessidades de sua época e não pelo passado.

Então, fui pesquisar sobre o início do movimento feminista e o que descobri era bem diferente das opiniões que circulavam na internet e nos púlpitos…

• SENECA FALLS, 1848

O primeiro evento considerado feminista na história aconteceu em 1848 em uma Igreja Metodista em Seneca Falls, Nova Iorque. O evento foi uma convenção que durou dois dias e terminou com 68 mulheres e 32 homens assinando a Declaração de Sentimentos, com reivindicações e um plano de ação pelos direitos das mulheres. Esse documento seguia o modelo da Declaração da Independência dos EUA, contendo 12 resoluções pela igualdade de tratamento entre homens e mulheres e defendendo o voto feminino.

Porém, tudo começou 8 anos antes, com Lucretia Mott e Elizabeth Cady Stanton. Ambas estavam participando da Convenção Mundial Antiescravidão em Londres com seus maridos, e o comitê de credenciais decidiu que as mulheres eram “constitucionalmente inadequadas para reuniões públicas e de negócios”. Houve um debate e foi decidido que as mulheres seriam segregadas em uma seção feminina em outro andar separado por uma cortina, homens falariam, mulheres não. Elizabeth Cady Stanton depois disse que as conversas mantidas com Lucretia Mott naquela seção feminina fizeram nascer a ideia de realizar uma reunião em massa para tratar dos direitos das mulheres.

Lucretia (de tradição cristã quaker) e Elizabeth já tinham consciência de que mulheres deviam ter o direito de falar tanto quanto os homens. As duas já estavam envolvidas com a causa da abolição à escravidão, e sua experiência nessa luta só aumentou o senso de que os direitos humanos deveriam se extender às mulheres.
Então em 1848 após uma convenção anual dos quakers, Lucretia Mott, Martha Coffin Wright, Elizabeth Cady Stanton, Mary Ann M’Clintock e Jane C. Hunt (todas mulheres engajadas na luta abolicionista) tornaram a Convenção de Seneca Falls uma realidade. Em 14 de Julho publicaram um anúncio no jornal divulgando a reunião especialmente no interior do estado de Nova Iorque, o anúncio dizia: “Uma convenção para discutir a condição social, civil e religiosa e os direitos da mulher, será realizada na Capela Wesleyana, em Seneca Falls, NY, na quarta e quinta-feira, 19 e 20 de julho, atualmente; começando às 10 horas. Durante o primeiro dia, a reunião será exclusivamente para mulheres, que são sinceramente convidadas a participar. O público geralmente é convidado a estar presente no segundo dia, quando Lucretia Mott da Filadélfia, e outros, senhoras e senhores, discursarão na convenção. “

• DECLARAÇÃO DOS SENTIMENTOS

A Declaração dos Sentimentos foi o documento apresentado e debatido em Seneca Falls, e após o debate sobre quem poderia assiná-lo (homens e mulheres ou somente mulheres), 100 das 300 pessoas presentes assinaram.

“Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todas os homens e mulheres foram criados iguais; que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade; para garantir estes direitos os governos são instituídos, derivando seus poderes do consentimento dos governados. Qualquer forma de governo que se torna destrutivo para estes direitos, é direito daqueles que sofrem dele a se recusar a lhe dar lealdade e insistir na instituição de um novo governo, colocando suas fundações em tais princípios e organizando seus poderes deles, já que para eles deverá ter maior probabilidade de afetar sua segurança e felicidade.”

• SUFRÁGIO

Antes do feminismo, o movimento abolicionista deu às mulheres a oportunidade de se organizarem politicamente e iniciarem o movimento sufragista, que era essencialmente formado por mulheres cristãs. Muitos afirmam que essa é a primeira geração de feministas.

Grande parte dessas mulheres eram do grupo Woman’s Christian Temperance Union, o primeiro grupo feminino organizado em prol de reforma social, e se manteve o maior e mais influente grupo até então, com 2 milhões de membros. Essa união potencializou o envolvimento feminino na política.

Lucy Stone (1818–1893), sufragista e defensora dos direitos femininos, fez seu primeiro discurso feminista no púlpito da Igreja Barista Evangélica Congregacional, pastoreada por seu irmão, em 1847. Lucy estava indignada com o modo como a Bíblia era utilizada para validar o machismo, e acreditava que se lida corretamente, a Palavra instruía direitos iguais para homens e mulheres.

COMO UMA ONDA NO MAR

“Tudo o que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo”
Lulu Santos

De maneira bem simples e resumida, as ondas do feminismo servem para categorizar o movimento de acordo com seu contexto histórico e cultural, sua organização e conquistas. Na prática nos ajuda no estudo, na pesquisa, e na própria identificação, ao alguém dizer que se identifica e concorda mais com a primeira onda do que com a segunda, por exemplo.

Cada onda, em tese, tem suas demandas, reivindicações e valores. Digo “em tese” porque as ondas tem fim didático, e na prática o feminismo nunca foi homogêneo, sempre houveram vários grupos com suas especificidades.

• PRIMEIRA ONDA

Considera-se a primeira onda feminista os acontecimentos do fim do século XIX até meados do século XX, e foi caracterizado por sua organização enquanto um movimento, suas reivindicações por parte das mulheres à direitos sociais que homens já debatiam e conquistavam (voto, participação política, vida pública, propriedades..). Aqui vale destacar que as mulheres que reivindicavam o voto eram mulheres brancas, que mesmo sendo submissas aos pais ou esposos, tinham mais dignidade garantida do que as mulheres negras estadunidenses.

Então, no feminismo da primeira onda, além dos direitos sociais, existia um grande grupo de mulheres lutando pela abolição da escravatura. Um grande grupo, mas não a totalidade das feministas, existiam aquelas que mesmo lutando por direitos sociais, participavam de outros movimentos supremacistas, como a KKK.

Anne Knight, Lucretia Mott, Hannah Whital Smith, Isabella Ford, Lucy Stone, e Sojourner Truth são importantes mulheres cristãs da primeira onda. Destaco Sojourner Truth, pregadora, ex escrava, alguém que vale a pena conhecer a história.

• SEGUNDA ONDA

É neste ponto histórico que há uma rachadura visível entre fé e feminismo. A segunda onda inicia em meados dos anos 50 e vai até meados dos anos 90, século XX.

Se a primeira onda focava em direitos básicos e sociais, a segunda onda não tinha as mesmas demandas. É na segunda onda que surgem os nomes mais conhecidos e importantes do movimento, como Simone de Beauvoir.

As demandas do movimento se tornam mais ideológicas neste ponto, debatendo questões filosóficas e ideológicas, sobre família, sexualidade, sociedade e concepção. As lutas civis não acabam, feministas lutavam contra violência doméstica, estupro conjugal, abusos sexuais, mudanças na lei da custódia, etc.

Na segunda onda o feminismo se torna mais acadêmico (e aqui vale pontuar que as diferentes demandas sociais e raciais ficam ainda mais evidentes), começa a nascer a teoria-base sobre opressão feminina, a teoria raiz feminista focada em debater a exploração da mulher por seu gênero e caráter reprodutor.

Na mesma medida que o ativismo ideológico cresce, o cristianismo passa a ser visto negativamente, como uma pedra no caminho do movimento. A própria história do feminismo começa a negar e ignorar a importância das mulheres cristãs no início do movimento, e até estereotipar como fanáticas a maioria das mulheres da Woman’s Christian Temperance Union. Mesmo assim, cristãs e feministas trabalharam juntas contra a pornografia, entre 1970 e 1980, lutando contra a objetificação e subordinação sexual feminina.

Que fique claro que os estudos feministas não foram completamente negativos e devem ser ignorados completamente. As teóricas da segunda onda buscaram identificar as raízes da opressão, o fato comum que faz com que mulheres do mundo inteiro estejam (e na época estavam ainda mais) em situações piores que a dos homens. A conclusão que elas chegaram foi o próprio sexo e a capacidade reprodutiva da mulher, que alimentava o patriarcado e o capitalismo.

Foram as teóricas da segunda onda que apontaram que casamento e maternidade poderiam ser usados para subjulgar mulheres (recebendo menos em seus trabalhos e fazendo tripla jornada, por exemplo), e como a violência sexual e o estupro faziam manutenção do poder masculino sobre a figura feminina.

Diferente da primeira onda, aqui temos dezenas de publicações importantes, livros escritos por mulheres feministas que servem (contextualizados ou não) de referência até hoje, Entre os grandes nomes da segunda onda, estão Betty Friedan, Carol Hanisch e claro, Simone de Beauvoir.

• TERCEIRA ONDA

A terceira onda é geralmente identificada a partir dos anos 90, com a redefinição, correção e preenchimento de lacunas da segunda onda. Emergiu juntamente com os movimentos punk femininos, lançando o famoso termo “riot grrrl” (garota rebelde), com Kathleen Hanna, da banda punk Bikini Kill. Essas garotas rebeldes tinham suas reivindicações bem semelhantes às suas precursoras, mas a partir delas começou um distanciamento.

O maior problema da segunda onda é que nascia, especialmente, da experiência de mulheres brancas, de classe média, várias acadêmicas, e acabavam por não incluir mulheres que estavam à margem, como mulheres negras e periféricas. Um exemplo comum é que o feminismo defendia o direito de mulheres trabalharem, mas mulheres negras sempre foram obrigadas a trabalhar.

Na terceira onda, o conceito de Interseccionalidade, que já existia, cresce. E a ideia da interseccionalidade é a ferramenta mais importante que você pode tirar desse texto, é ela que nos auxilia a analisar nosso contexto e o de outras mulheres, nos fazendo enxergar os diversos sistemas de opressão (raça, classe social, localização geográfica, capacidade física e tc) se relacionam e se sobrepõem dependendo da mulher em questão.

A distinção entre o “feminismo da segunda onda” e o feminismo negro se torna evidente. Como já falamos aqui, as demandas são diferentes, cada grupo de mulheres tinha necessidades sociais e estruturais além das necessidades em comum para tratar.

Para entender e aplicar à nossa realidade na prática, voltamos lá no início do texto quando conversamos sobre as diferentes realidades femininas. É isso que a interseccionalidade vai tratar: Ana Maria é uma mulher branca, de classe média morando na capital de São Paulo, que faz mestrado na USP. Ana Maria não tem as mesmas demandas de Teresa, uma mulher negra, pobre, casada, que mora num subúrbio no nordeste brasileiro, e trabalha numa casa de família.

Vamos supor que Ana esteja sendo sabotada no seu trabalho, já que seus chefes preferiram dar a promoção para um homem que é menos capacitado que ela para ocupar a vaga, e além de tudo isso, um dos seus professores do mestrado a assedia frequentemente, mas o medo de ser prejudicada a impede de denunciar. É por isso que Ana entende que precisa do feminismo, para que o ambiente de trabalho seja igual e sua capacidade não seja podada só por ser mulher, e da mesma forma, que seu professor não use da sua posição de poder para tentar se beneficiar sexualmente dela na base do medo.

Já Teresa, tem uma jornada tripla de trabalho intenso. Sai de madrugada para o trabalho, é doméstica na casa de uma advogada negra que mora no centro, constantemente ouve comentários racistas de outros moradores do prédio quando passa com sua empregadora, e tem medo do filho de uma das vizinhas, por sempre perceber a maneira sexualizada como ele a olha. Quando chega em casa após o serviço, tem que cuidar sozinha de 2 filhos, preparar as refeições e fazer os serviços domésticos enquanto o marido que só trabalha meio período.
Teresa entende (com a ajuda de sua patroa) que precisa do feminismo para ajudá-la a combater o racismo da sociedade que a cerca, para combater o machismo que a sexualiza e faz com que sempre tenha medo do filho da vizinha, e que faz seu marido acreditar que mesmo que ela trabalha mais que ele, e receba menos, ela ainda tem por obrigação que dar conta das tarefas domésticas.

E acredite, a empregadora de Teresa teria ainda outras demandas e necessidades. Isso é interseccionalidade, olhar cada mulher de acordo com sua realidade e não como parte de um grupo que quer e precisa das mesmas coisas.

O grande ponto em comum da terceira onda é a quebra desse pensamento padronizado, que prende mulheres em grupos definidos e homogêneos. É aqui que o feminismo se individualiza ainda mais e cada grupo e subgrupo tem sua pauta própria.

Algumas autoras da terceira onda que valem muito a leitura: Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro (brasileiras), bell hooks e Angela Davis.

• QUARTA ONDA?

Já se fala em quarta onda mas ainda não há nada teoricamente estruturado, autoras discordam sobre sua existência, mas superficialmente entende-se seu início por volta de 2012. Quem defende que estamos vivendo uma quarta onda, apontam a internet como a ferramenta potencializadora das organizações do movimento.

Entre as pautas da quarta onda, estão: o assédio nas ruas e no ambiente de trabalho, violências sexuais que acontecem nas universidades, a naturalização e o aumento dos casos de estupro. Escândalos de feminicídio, assédio, e abusos inflaram o movimento, entre eles o caso de estupro coletivo em Délhi em 2012, as polêmicas contra Bill Cosby e Kimmy Savile, o massacre de Isla Vista em 2014, as acusações contra Harvey Weinstein em 2017, e aqui no Brasil, o caso da adolescente dopada e estuprada por 30 homens no Rio de Janeiro, em 2016.

EU PRECISO DO FEMINISMO?

Concordando ou não com a existência da quarta onda, é fato que o tema voltou a se popularizar com o crescimento e a popularização da internet e a maneira como é debatido se atualiza diariamente.

A ideia de dividir em ondas, como sabemos agora, parte da ideia de separar e categorizar os momentos históricos, suas demandas e pautas. As demandas dos anos 2000 não são as mesmas dos anos 50, quando o clássico O Segundo Sexo de Simone de Bearvouir foi lançado.

O que costumo falar em rodas de amigas é que o feminismo precisa ser contemporâneo à sua época, por mais que autoras do passado tenham sua relevância e influência e possam ser aproveitadas (mesmo que só pra estudo), deveriamos ler e ouvir mais mulheres que estão vivendo e vendo as mesmas coisas que nós.

Chimamanda Ngozi Adichie deveria ser mais relevante hoje do que Betty Friedan. E nós aqui no Brasil, temos excelentes mulheres produzindo o chamado feminismo latino-americano, focado nas vivências daqui (deixarei indicações de leituras no fim).

A questão é, que cada mulher que se diz feminista terá suas referências, uma visão de mundo e uma visão do próprio movimento. Há aquelas que acreditam que feministas não podem ser cristãs, ou não deveriam se casar, ou que deveriam se considerar feministas só aquelas que já leram a literatura clássica do movimento.

Mas também há aquelas, mais alinhadas ao que faz sentido pra mim, que acreditam que apenas o fato de acreditar e buscar direitos sociais iguais entre homens e mulheres já torna a mulher feminista, caso queira.

E tudo bem não ser feminista, o problema ao meu ver é que mulheres que asteiam essa bandeira do não-feminismo geralmente sabem praticamente nada sobre o movimento, ou apenas conhecem a pior parte dele, acaba por ser um pensamento desonesto.

A importância da construção do pensamento crítico, é para que nós tenhamos uma opinião baseada na nossa vivência, no que sabemos e acreditamos, e não no que nos levaram a acreditar.

Uma falácia comum, especialmente no meio evangélico, é que o feminismo quer destruir casamentos. Sinceramente, com a quantidade de tragédias que acontecem com mulheres hoje, estragar o casamento de alguém não é nem de longe a prioridade do movimento.

Se você precisa do feminismo?

Essa pergunta que pode surgir várias vezes na cabeça de mulheres cristãs não deveria ser respondida por terceiros. Eu tenho a minha resposta, você pode ter a sua e ser diferente.

Eu preciso do feminismo? Socialmente falando, com certeza. Ideologicamente falando, não. É a conclusão a que eu cheguei, baseada nos meus desafios enquanto mulher na sociedade e em relação a minha fé. O mundo é realmente maldoso, com mulheres especialmente. Perdi a conta das vezes que senti muito medo voltando de ônibus da faculdade à noite, por ser a única mulher no transporte, homens não têm essa preocupação.

O feminismo não impacta a minha forma de viver a minha fé, é a minha fé que impacta aquilo do feminismo que faz sentido pra mim. Jesus foi o primeiro a levantar mulheres e restaurar sua dignidade, a dar voz àquelas que a sociedade não ouvia, a perdoar aquelas que homens acreditavam que deveriam morrer. Não há na bíblia nenhuma margem para a figura feminina ser desprezada, mas a sociedade (e muitas vezes a igreja) usa da bíblia para oprimir mulheres ao redor do mundo, e isso não condizente com a vontade do próprio Deus para nós, que somos tão semelhantes à Ele quanto homens.

Espero que você tenha lido esse texto como uma conversa entre amigas, esse é um assunto que eu amo conversar com as minhas. Se fosse pra escolher algo que cada leitora tiraria de lição, seria a ideia de empatia com a realidade de outras mulheres, e respeito por todas que por suas razões, se engajam no feminismo.

E claro, desejo muito que você sempre que ouvir algo sobre feminilidade, não tome para si sem questionar, nem olhar sob a perspectiva da Palavra de Deus, pela ótica da mulher na sociedade, e não aceite nunca ser manipulada por nenhum discurso.

Amém?

Teoria feminista: Da margem ao centro — bell hooks

E eu não sou uma mulher?”: A narrativa de Sojourner Truth — Sojourner Truth

A história de Sojourner Truth, a escrava do Norte — Olive Gilbert

Um feminismo decolonial — Françoise Vergès

Mulheres, raça e classe — Angela Devis

O segundo sexo — Simone de Beauvoir

Sejamos Todos Feministas — Chimamanda Ngozi Adichie

Elas em legítima defesa: Elas sobreviveram para contar — Sara Stopazzolli

Praia dos Ossos — Podcast

Série “Bom dia, Verônica” — Netflix

Filme “Felicidade por um fio “ — Netflix

Texto “Como mulheres cristãs impactaram o Feminismo na história

Texto “Por que o antifeminismo é anticristão?

Texto “O que toda mulher cristã precisa ler sobre Feminismo?

Texto “O que são as ondas do Feminismo?

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Rayane France

brasiliense, 95’s, criativa, meio artista, meio escritora, beyhive e de Jesus