O que podemos (des)aprender sobre Pureza com “Hillsong: A Megachurch Exposed”

Rayane France
11 min readMay 20, 2022

Desde o dia 16 de fevereiro, quando o Discovery Plus liberou o trailer (deixei o link no fim do texto) do documentário de três episódios “Hillsong: A Exposição de uma Mega-igreja”, em que a Hillsong se viu mais uma vez nos holofotes ao redor do mundo. O motivo? A promessa de expor casos de abuso sexual, pedofilia e outros “podres” que aconteciam dentro da organização de uma das maiores e mais influentes igrejas da atualidade.

Chega a ser cômico apresentar a Hillsong, visto que sua fama ultrapassa o evangelicalismo. Muitos podem não ser familiarizados com a liderança, músicas, álbuns… Mas podem ter ouvido falar da igreja que tem (ou teve) no seu hall de membros nomes como Justin Bieber, Selena Gomez, Kardashians-Jenner, Hugh Jackman e outros famosos. Vou pular essa parte, mas caso você não a conheça e tenha interesse, pode clicar aqui.

O documentário lançado em março (chegando no Brasil mais ou menos no meio de abril) expôs uma face desconhecida por muitos, mas que não chega a ser surpreendente para quem já conhecia um pouco mais da Hillsong e até mesmo para quem vivenciou ou vivencia a realidade da igreja evangélica. É fácil se identificar com os relatos, histórias, pensamentos e ideologia compartilhados pelos entrevistados, e talvez seja essa a lição mais importante que se pode tirar do material: não estamos distantes da cultura que possibilitou e até causou todos os abusos mostrados.

Aqui o uso da palavra CULTURA é intencional e esclarecedor. Cultura é o conjunto de comportamentos, hábitos, linguagem, crença que define e difere uma comunidade de outra, e é isso que se pode perceber em cada relato, a Hillsong (e o evangelicalismo) promove uma cultura, que não é necessariamente bíblica. O documentário traz vários problemas da instituição, mas vou me ater aos relatos sobre sexualidade, pureza e moral.

No primeiro episódio, conhecemos um pouco mais da história da Hillsong New York e Carl Lentz. Carl é americano, foi estudar na Hillsong College na Austrália e caiu nas graças de Brian Houston, e em 2010 co-fundou a Hillsong NY, igreja que pastoreou até novembro de 2020, quando foi demitido após ter um caso extraconjugal exposto.

Ele era o case de sucesso da cultura de “faça tudo certo e colha bons frutos” da Hillsong: jovem pastor, bonitão, malhado, casamento feliz, família feliz, rico, respeitado, seguido. Todos os ex-voluntários da igreja de NY que o conheceram falaram sobre seu carisma no palco, confiança, o descreveram como “genuíno e autêntico”, perfeito para ser a cara da igreja em uma das capitais mais importantes do mundo.

Brian Houston viu potencial no jovem e acertou. Carl parou em tapetes vermelhos e no sofá da Oprah. Vale ressaltar que independente do tamanho de uma comunidade local, o pastor está em uma posição de poder, assim como um professor em sala de aula. Essa posição de poder por si só já dificulta que vítimas de assédio denunciem ou mesmo identifiquem quando limites são extrapolados, imagina quando se é amado por um país inteiro e se tem milhões de seguidores nas redes sociais.

“ Ele parece um galã. Tem fotos dele andando Justin Bieber em que Justin Bieber é quem está mal”

Porém, outras características que não casam com o exercício pastoral também foram associadas a Carl: “Sex Appeal”, narcisismo, controle, manipulação, hipocrisia…

Começando pelo sex appeal ou no nosso bom e velho português, apelo sexual. Definitivamente não convém a um pastor pregar com roupas excessivamente justas, ou ser fotografado com calças que marcam seu órgão genital. Para comparar, é só imaginar o que falariam se a líder de uma mega igreja sempre fosse vista vestida com o guarda-roupa da Kim Kardashian. A verdade é que mulheres são julgadas por muito menos, e Carl está longe de ser o único pastor que usa do apelo sexual como arma de carisma dentro e fora da igreja e até nas redes sociais.

Coincidentemente também em 2020, um pastor brasileiro bastante influente foi acusado de importunação sexual e exposto nas redes sociais por assediar jovens de sua igreja, que também foi acusada de ocultar outros casos de assédio e abuso. Assim como Carl, as redes sociais do pastor eram cheias de fotos que ostentavam seu estilo de vida abastado financeiramente, sua família perfeita e seu “shape” em dia. A diferença é que o brasileiro se livrou das acusações criminais, e mesmo com as provas suficientes do seu comportamento sexual não-condizente com sua posição, continua liderando e expandindo sua igreja.

Falando a partir da minha experiência assistindo ao documentário, até o fim do primeiro episódio o sentimento era de “hm, desapontada, mas não surpresa”, mas isso muda quando Jacklyn Hayes e Sammi Lizzote entram e compartilham suas experiências com Carl Lentz enquanto pastor da Wave Church, onde se tornou pastor de jovens após se formar na Hillsong College.
Em resumo, Jacklyn e Sammi relatam como a chegada dos Lentz mudou o tom pastoral que a igreja tinha sobre namoro e sexualidade de compreensivo e compassivo para metódico, rígido, controlador e cheio de regras (como só dizer “eu te amo” após o pedido de casamento), e que pureza era um tema recorrente.

Jacklyn conta que aos 19 anos, ela e o namorado, com quem estava há um ano, decidiram transar e se sentiram culpados logo em seguida. Então, após irem à frente num apelo durante o culto, foram para uma sala com Carl Lentz (sem nenhuma mulher presente) e compartilharam com vulnerabilidade, franqueza e honestidade o que havia acontecido. Quando questionados se haviam usado proteção, Jacklyn confirma e a resposta imediata do pastor foi: “Rá, então foi premeditado!”. Carl usou a vulnerabilidade e confiança que os jovens estavam depositando nele e respondeu com condenação, humilhação e aumentou ainda mais a culpa que ambos já sentiam. O casal além de ter sido afastado de suas atividades, foi obrigado a terminar o namoro e romper qualquer tipo de contato.

“Estávamos condicionados. Quando você frequenta essa igreja, com toda essa prosperidade e sucesso e é isso que você almeja, não parece tão controlador se submeter a certas coisas. Então é muito fácil, foi muito fácil pra mim me submeter.” Jaclyn

Nesse ponto, o depoimento do que aconteceu com Jaclyn em 2006 é revezado com o de Ranin Karim, a mulher muçulmana que trouxe a público em 2020 seu caso com Carl Lentz. Não é o objetivo aprofundar a relação de ambos neste texto, mas é interessante observar como as características de manipulação e controle que Carl utilizava com suas ovelhas eram as mesmas que usou em sua relação com Ranin, que o descreve como controlador, abusivo, “personagem do seu próprio show”, narcisista, caótico.

Para Jaclyn, só havia um caminho de esperança: casamento, então ela e o namorado, jovens imaturos de 20 e poucos anos, resolvem se casar meses após a trágica conversa com seu pastor. O medo da exposição de serem obrigados a romper novamente os empurrou para o matrimônio, que obviamente terminou de maneira dolorosa alguns anos depois.

O relato de Jaclyn poderia ter acontecido em várias igrejas que conheci e frequentei, comigo ou com qualquer amiga que teve uma formação sobre pureza baseada em culpa e mérito. Como é dito no documentário, o casamento muitas vezes é tratado como um escape, um “brinquedo”, um passaporte pra sexo livre e não uma escolha séria que exige maturidade. Também posso apostar que quase todos já ouvimos um relato (ou fomos essa pessoa) que foi atrás de aconselhamento e recebeu condenação.
O papel da Igreja de Cristo não é ser primordialmente uma reformadora de ética moral, mas uma representante de Jesus, propagadora do Evangelho.

Quando os fariseus colocam diante de Jesus e da multidão a mulher pega em adultério (João 8), Ele tanto não cede à pressão moral das pessoas quanto não expõe os pecados dos acusadores. De uma só vez, Jesus demonstra misericórdia e compaixão aos acusadores e à acusada.

Claramente existe uma ética moral e sexual na Bíblia, mas não foi por ela que Cristo foi crucificado, e a moralidade sem graça produz morte.
“Porque o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo. “ Tiago 2:13

Também é necessário frisar que uma vida de “pureza” não é moeda de troca: “se eu for puro, Deus tem obrigação de me abençoar com um casamento completamente feliz e sem nenhum problema”. Nos últimos anos, é visível a quantidade de jovens cristãos com menos de 30 anos que já estão divorciados. A história muitas vezes se repete: casaram cedo demais porque foram, de certa forma, incentivados e até pressionados pela igreja. Só que a igreja não os preparou para a realidade do casamento, e ele tampouco resolve todos os problemas sexuais.

Por mais que até a metade o documentário foque bastante no adultério de Carl Lentz, esse não é nem de longe o maior dos problemas da Hillsong, e nem do próprio Carl, que em 2021 foi acusado de abuso sexual por uma ex-babá. O que fica evidente é que ele foi usado como bode expiatório para preservar a imagem imaculada do império de Brian Houston, que na época jurou diante de Deus que até então não haviam suspeitas sobre Carl, e é desmentido por ex-pastores da Hillsong que afirmaram que já haviam avisado sobre outros comportamentos e condutas duvidosas da igreja de Nova York.
A má conduta do pastor presidente da sede em Nova York não era desconhecida, mas era acobertada. Quem ia mexer com a galinha dos ovos de ouro?

É importante lembrar que Carl Lentz foi formado na Hillsong College e foi lá que ele aprendeu sobre pureza sexual, ele é o fruto que não caiu longe da árvore. Então, o documentário nos apresenta Anna Crenshaw e Bailey Krawczyk.

Ambas compartilham como alunos da Hillsong College eram cobrados em relação à sua conduta moral e sexual. Haviam entrevistas, pré-requisito para estágios e matérias onde os alunos eram perguntados sobre sua vida sexual, uso de drogas, bebidas, e caso a resposta não fosse condizente com a conduta da instituição, poderiam ser disciplinados ou até expulsos. Bailey contou como ficou angustia quando “precisou” contar de um abuso sexual que sofreu, e mesmo deixando claro várias vezes que havia sido obrigada, que não queria fazer nada e que fora embebedada, em nenhum momento a pastora que a entrevistou a ajudou a entender que havia sido vítima de abuso, mas sim disse “já que você já se arrependeu, confessou, então não será reprovada”.

Bailey diz que essas informações extremamente íntimas que os alunos passavam logo se tornavam informações que definiam as oportunidades que teriam dentro da faculdade, além da maneira como eram tratados. Uma cultura punitiva e inexistente em graça, onde os alunos eram recorrentemente lembrados de seus traumas, e constantemente culpados de situações onde eram vítimas.

Porém, aparentemente essa rigidez não se aplica da mesma forma para líderes ou pessoas influentes. Anna Crenshaw fora assediada sexualmente por Jason (jovem membro do louvor da Hillsong Church, casado, filho do chefe do RH) na casa de um colega da faculdade em 2016, diante de várias pessoas, com testemunhas, e depois de anos quando conseguiu contar o que havia acontecido, a faculdade e a igreja não fizeram nada para a ajudar a lidar com o trauma. Apenas após a polícia e seu pai se envolverem que medidas foram tomadas, enquanto Jason continuou em suas funções durante todo o processo.

Sobre o caso, Brian Houston disse publicamente: “não estou aqui para defender Jason, mas uma coisa que sei é que não estamos falando de um predador sexual aqui, mas de um jovem, um jovem casado que cometeu algo estúpido”. Em outra oportunidade expôs na internet um abuso sexual prévio que Anna havia sofrido na igreja que seus pais pastoreiam.

O poder e a autoridade sendo usados para acobertar casos de abuso, assédio e má conduta são claros e fazem parte da cultura, e assim, o documentário entra nos casos de pedofilia de Frank Houston, pai de Brian e fundador da Hillsong. A instituição fez tudo que podia para abafar os casos, inclusive abuso financeiro e chantagem com uma das vítimas, além da dificuldade absurda em dar nome ao crime cometido por Frank: pedofilia.

Sem dúvidas, essa é a parte mais chocante. De repente, a traição de Carl se torna poeira, e a maneira como foi tratada é apenas um reflexo do lugar onde foi formado.

O que separa nossas pequenas igrejas de menos de mil membros da Hillsong é só o dinheiro. Inclusive, preciso discordar de uma das entrevistadas que várias vezes coloca o fator financeiro como o único objetivo de Brian Houston em construir um império, mas se fosse assim não teríamos casos de abuso muito parecidos em igrejas ao redor do mundo que não tem 1% dos cofres da Hillsong Church. Algo que qualquer cargo eclesiástico pode oferecer é poder e relevância.

Quando um pastor resolve acobertar casos de abuso de autoridade e assédio sexual, quem ou o que ele está protegendo? O que John MacArthur estava defendendo em 2002 ao expor e envergonhar publicamente durante o culto uma mulher por não aceitar seu marido abusador de volta? Homem esse que ensinava às crianças da igreja e hoje cumpre prisão perpétua por abuso e lesão infantil, além de abuso sexual.

O ensino sexual carente de graça e misericórdia nunca funcionou nas igrejas e mesmo assim continuamos seguindo em nossas igrejas o método de castração de comportamento ao invés de compartilhar ferramentas e conhecimento para gerar autonomia e maturidade.

Assim como aconteceu com Bailey e Anna, mulheres vítimas de abuso e assédio tem dificuldade em procurar ajuda e testemunhar. Dentro da igreja, essa carga é multiplicada pela vergonha e pela associação do abuso à perda da pureza. O quão cruel é fazer uma vítima de abuso sexual acreditar que nunca mais será pura diante de Deus? Falei mais sobre isso aqui.

Nós ainda vemos dificuldade em chamar estupro de estupro dentro da igreja, chamar violência doméstica de violência… Muita coisa vai direto para debaixo dos tapetes com o argumento de “evitar o escândalo”, mas será que Deus está sendo glorificado enquanto uma multidão de pecados é acobertada dentro de gabinetes pastorais? Quanto sangue está sendo derramado?

Vale citar a história de Davi, exemplo de como funciona o abuso de poder e os privilégios da autoridade. Como rei, usou sua autoridade para tomar Bate Seba para si, a estuprou e matou seu marido (2Sa11). Depois, acobertou quando seu filho Amnom estuprou sua filha Tamar (2Sa13). Deus não deixou impune e trouxe desgraça para a família de Davi, e ainda deixou registro na Bíblia para servir de exemplo que Ele mesmo não escondeu as falhas do homem chamado segundo o Seu coração.

O que podemos aprender:

1) Não é sobre não ter ensino sobre pureza, santidade, e sexualidade, mas tratar com os pés fincados na realidade e na Palavra de Deus, despidos da moralidade secular.
Quantas gravidezes fora de hora seriam evitadas se líderes fossem honestos, e ao invés de tratar o sexo como tabu, conversassem sobre prevenção, doenças, responsabilidade, consequência, planejamento familiar? Fundamental crer que o Espírito Santo sempre nos guiará em direção à sua vontade. Se nem a melhor pregação convence por si só, imagine a pautada em medo.
É sobre ter uma cultura bíblica que gere autonomia para que as pessoas façam suas escolhas não por pressão, mas por entenderem o propósito de Deus para a maneira como vivem sua sexualidade.

2) A culpa e a vergonha são um terreno infértil, e não constroem absolutamente nada em Jesus.

3) Os pastores não são infalíveis ou inquestionáveis.

4) A Igreja não tem membros VIP. O livro de Tiago existe e precisa ser leitura frequente.

5) Qualquer igreja que precise de muitos segredos para continuar de pé não deveria existir.

6) Religiosidade é adubo para hipocrisia

7) Abuso tem nome, é crime e pecado

E a última lição é de Sammi Lizzotte em uma das falas no documentário: não devemos dar a nenhum homem, independente de quem for, a influência e poder de decisão que pertence somente a Deus.

Revisão textual: Gabriela Leite
Revisão teológica: Pra. Laís Bessa

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Rayane France

brasiliense, 95’s, criativa, meio artista, meio escritora, beyhive e de Jesus