Não era nada, mas foi arte.

Rayane France
5 min readAug 14, 2021

(Recomendo dar play baixinho na música que tá no fim do vídeo e então começar a ler.)

anna macht art

Algumas vezes, enquanto ouvia Arctic Monkeys, ficava me perguntando como a Alexa Chung se sente hoje ao ouvir alguma música que Alex fez pra ela. Ou sobre ela. Será que é sempre uma memória quando toca “She’s Thunderstorms” na rádio do carro?

É engraçado porque Alexa e Alex sempre foram discretos em relação às suas vidas pessoais e até mesmo seu relacionamento, mas não adianta: o que eles não falavam e os sentimentos que não eram públicos, estão todos compartilhados e transbordam nas músicas que tocam no mundo todo. Pode ser desesperador para alguns, mas é bonito o jeito que artistas contam a própria vida.

E então, conheci ele. Um cara grandão de 1.85 — que parecia ainda maior quando o vi tocando cavaquinho no jardim do centro de música da cidade, num dia atípico em que fui buscar meu primo mais novo em uma aula de violão. Ou guitarra. Baixo? Enfim.

Não me recordo de ter ficado tão interessada em alguém antes como fiquei pelo tal moço que estava de jeans e camiseta azul marinho, de pernas cruzadas, tocando “o mundo é um moinho” do Cartola enquanto olhava para o absoluto nada.

Era um bloco infantil da escola, supus que fosse um professor e foi a primeira coisa que perguntei para meu primo quando o encontrei, se ele sabia quem era “o moço no meio do jardim”.

Em resumo, era mesmo um professor. Consegui o nome, o instagram e, movida por uma curiosidade absurda, comecei a interagir [depois de supor que o rapaz não era casado e pai de 10 filhos]. Os posts eram todos sobre música, aulas, fotos de apresentações de crianças… ele era realmente muito bom… puxar papo e elogiar não foi nenhum sacrifício.

Conversamos durante algumas semanas. Primeiro sobre música no instagram; depois sobre a vida no whatsapp; até que um dia ele me convidou para assistir a apresentação de uns amigos dele, num lugarzinho onde as bandas alternativas sem muita pretensão tocavam.

Fui. E lá estava ele com os cabelos mais longos do que o dia do jardim [quando o vi semanas antes], ainda mais bonito do que minha primeira impressão. Os fios escuros começavam a fazer ondas, a pele tinha sardas, os cílios eram bem cheios, vestia jeans de lavagem escura, camiseta cinza e uma jaqueta bomber azul marinho. Aliás, o azul e o cinza eram para ele o que o “preto e branco” são para outras pessoas de guarda-roupa monocromático.

Os amigos eram realmente talentosos, fizeram covers e cantaram músicas autorais que eram bem boas. Gostei de uma em especial: bossa meio pop bem romântica que contava a história de um desses amores juvenis que nascem na vizinhança.

“Essa letra é minha…”

Ele respondeu quando comentei que tinha gostado, e provavelmente fiz uma cara de surpresa que não deu pra disfarçar, porque ele logo continuou contando sobre a história da bossa meio pop bem romântica que terminava de tocar ao fundo e era seguida por alguma versão indie da Gal Costa.

Não recordo os detalhes, mas a história é a seguinte: ele escreveu a música para a primeira namorada, de presente de aniversário de 20 e poucos anos dela e 5 anos deles juntos. Continuaram juntos por mais uns 2 anos até que se separaram. Anos se passaram, eles se afastaram, os amigos gravaram a música e ela começou a namorar um músico de outra banda. Num festival independente da cidade, o atual namorado ouviu a música, gostou demais, ouviu de novo nas semanas seguintes e um dia sugeriu que incluíssem-na na cerimônia de casamento deles.

História absurda e de filme se não fosse completamente plausível para nossa realidade de jovens de cidade pequena da época. Enquanto eu ria, ele disse que ficou sabendo porque a ex continuava morando no mesmo lugar e a encontrou num dia enquanto visitava os pais. Ela disse que não levou a sério no começo, mas não teve coragem de contar a história e depois já era tarde demais, estava bastante desconfortável.

“Ressignifica. A música continua sendo uma declaração de amor pra você independente de quem esteja cantando.”

Foi o conselho dele. Lamento não ter desfecho, eles nunca mais se viram, faziam anos e não sei nem se realmente se casaram e se teve a bossa pop romântica na trilha.

Na hora lembrei de um conto que eu tinha escrito um tempo antes. Era uma auto-ficção, escrevi achando melódico e belo, mas todos que leram depois acharam triste. Bonito, sim, mas… triste. Não era a minha intenção, mas decidi publicar mesmo assim. É o desapego do artista: depois de criada, a criação toma seus próprios rumos e significados na vida de cada um, não dá pra controlar. Certo?

Outro dia, cheguei na escola e lá estava ele tocando alguma coisa no mesmo banco no jardim, estaria me apaixonando? Era um fato que vê-lo tocar, dar aula e falar sobre música me encantavam absurdamente, o tempo juntos era super agradável também. Contudo, não demorou tanto tempo pra perceber que eu gostava mesmo era do artista, do músico, mas ele não se resumia a isso e não tínhamos tanto em comum, e do jeito que nasceu, foi se acabando. Rápido e indolor para os dois lados.

Se me perguntassem o que foi que tivemos, responderia que não foi nada. E não foi mesmo, até que muitos meses depois, esse meu primo compartilhou um vídeo do “professor dele” tocando uma música autoral num recital da escola. Não deu tempo de pensar e lá estava eu ouvindo a canção: um sambinha sobre uma moça de olhos grandes, que fotografava todas as flores do caminho e fugia de todas as borboletas. Um sambinha, quem diria, sobre mim.

Me vi sorrindo feito boba, ouvindo vezes seguidas e, com olhos lacrimejados, deixei um comentário elogiando a apresentação. Não foi nada, mas nada na mão de artista vira algo, não é mesmo? Eu virei música. Ele, aqui, virou escrita. Sem desperdícios.

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Rayane France

brasiliense, 95’s, criativa, meio artista, meio escritora, beyhive e de Jesus